Sunday, December 4, 2011
Le Moi Errant: O início
Finalizo
o meu primeiro mês de viagens com uma nova rúbrica. Desde já agradeço à
Suzanne e à Ana Salvador por me guiarem a este título. Procuro por
aqui descrever a viagem interior que esta aventura também representa.
Viajar tem tanto de olhar para fora como passear por dentro. Espero que
gostem da mesma.
O início não
poderia ser mais intenso. Foram muitas emoções, epísódios e momentos
que me preencheram. É, mais que tudo, a fase de acomodar e de nos
confrontarmos com uma nova realidade. Nesse sentido foi muito diferente
do que esperava. Quer queiramos, quer não, criamos expetativas,
idealizamos situações. A realidade é sempre diferente. E sei que por
mais que tente passar para palavras o que vou vivendo, tal só poderá ser
sentido quando viajado. Nesse sentido foi talvez a minha primeira
surpresa, a diferença entre o ideal e o real.
Num primeiro
momento tentamos concretizar o que sonhamos, ver o que pretendiamos
ver, mas, no meu caso, tive de abandonar esse sentimento. O realidade é o
que é, e mais que realizar o que sonhei, quero viver o presente. Foi
difícil trocar a ânsia de ver pela calma de estar. Sei que estou a
perder muito. Que muitos locais acabo por não ver. Mas também sei que
tenho uma vida inteira para o fazer. Mais do que tickar uma lista de
to-do's, pretendo encontrar a minha viagem.
É
desconfortável a sensação de teres um mundo apetecível tão perto de ti e
optares por não ires a todo lado. Mas viajar é também ir à procura do
desconforto. Talvez seja isso que obriga um viajante a mudar por dentro.
Luta-se contra o nosso instinto natural de protecção. E quando estamos
num sitio confortável, já vamos para o desconhecido uma vez mais. Mas
esta mudança, este desconforto, obriga o teu espírito a estar
completamente aberto. Olhas com mais cuidado à tua volta. Sentes dentro
de ti uma insegurança que acabas por controlar. Onde queres chegar é
mais importante que esses sentimentos.
Sei que um
mês é pouco para dizer que mudei, mas a realidade é que aconteceu. Hoje
recordo-me já com um olhar algo distante. Ainda é uma mudança difusa e
sublime. Algo não concretízavel, mas à mesma é uma mudança...
Por debaixo do véu
Faz 32 anos que o
Irão foi coberto pelo véu islâmico. Desde então tornou-se mais distante.
Hoje pouco sabemos da realidade deste povo milenar. É nos alimentado
uma imagem de religiosidade radical, um estado ditatorial e de um povo
extremista. Um local fechado e desconfiado dos ocidentais. Não era essa a
imagem que me tinham oferecido por quem já o visitou. Supremo curioso
como sou, tive de descobrir o que se escondia por baixo do véu da minha
ignorância.
Tehran
É
barulhenta, escura e poluída. O rugido das suas motas dominam as ruas.
Andam por todo o lado – inclusive pelos passeios – e atravessar uma
passadeira é uma aventura imprópria para cardíacos. Mas esta cidade tem
uma vibração que no mínimo não te deixa indiferente. Capital política,
sente-se essa carga por aqui. Talvez num nível inconsciente. O melhor
exemplo são os véus. Encontras um para cada personalidade. Apesar da
obrigatoriedade, esta é desafiada por um véu que cobre apenas o fim do
cabelo. Ou então é confirmado pelo tradicional véu, no qual nem uma
ponta de cabelo vês. Uma dualidade muito presente por aqui.
Tive a sorte
de conhecer um pouco mais da sua vida. Presente oferecido pela enorme
simpatia de Mahdi. Compreendi que o “pitoresco” – trânsito – torna-se um
inferno para quem vive cá. Pude ser um “revolucionário” e escrevi num
dos inúmeros sites que este regime censura – o facebook. E terminei uma
noite com um petisco (beterraba em calda doce) que se vê à venda um
pouco por toda a cidade. Descubri também que a Europa é uma verdadeira
fortaleza. Mesmo que seja apenas em turismo, tornou-se uma tarefa quase
impossível arranjar visto se nasceste na coordenada errada deste
planeta.
Em termos
visuais não é uma cidade que enche os olhos. Entre o degradado e o
composto, encontramos de tudo. Um “tudo” que vem embrulhado numa névoa
de poluição e uniformiza a cidade. Um tom castanho acizentado apenas
cortado pelos algo-coloridos placares das lojas. Só que esta cidade
“esconde” algo muito especial. Apanha o metro e sai a norte. Tenho a
certeza que ficarás com a boca aberta. A vista das montanhas Alborz é
algo único. Talvez o melhor postal que Tehran pode oferecer. São
autênticos gigantes de rocha e neve que vigiam esta cidade.
Mas Tehran
tem mais para oferecer. A Praça Khomeini é o centro do movimento caótico
e lojas de rua. Da mesma saiem importantes avenidas (como a Ferdosi,
com as suas casas de câmbio e montras cheias de dólares). No meio, um
placard do Iman deixa-me surpreendido com a semelhança entre ele e o
Sean Connery. Devem confirmar isso com os vossos olhos. Muito especial
para mim, foi ver o graffitti da estátua da liberdade com o rosto de uma
caveira. Imagem icónica do anti-americanismo. Uma sensação estranha
podê-la ver ao vivo, quase de tom agri-doce. Os mini-aquedutos que
separam as estradas dos passeios são outro dos pequenos pormenores que
nos é oferecido. Antigos canais que transportavam a água potável, são
hoje locais por onde as chuvas pluviais correm. Com mais de 30
centimetros, rapidamente te habituas a ter cuidado com os mesmos. Se não
te chamarem à atenção num primeiro momento, estou certo que ao primeiro
susto de queda nunca mais te esquecerás.
Tehran é uma
óptima introdução a este país. O sítio perfeito para começar a levantar
o véu que o encobre. Para terminar, nada melhor que fumar shisha com
amigos. O local com aspecto semi-clandestino, fez-me temer o que
existiria por detrás da porta. Lá dentro um espaço pouco iluminado,
preenchido por sofás cobertos de tapeçaria persa e umas horas de
conversa.
Shiraz
“Desconfio que você queira ir para Persepolis...” diz-me um homem de tez morena e ar jovial. “será um adivinho?!”
penso num primeiro instante. No dia anterior tinha deixado um periquito
ditar o que Hafez tinha previsto para o meu destino. Ele é um dos
poetas mais celebrados pelo Irão. Toda a casa deve ter uma cópia de
Corão e de Hafez. E, tal como o Lonely Planet refere, desconfio que será
mais fácil encontrar uma cópia da obra de Hafez. Existe o hábito de
pedir um desejo, abrir o seu livro ao acaso e ver o que Hafez nos diz. À
porta da sua campa, algumas pessoas têm um conjunto de versos, e, por uma
pequena quantia, ficamos a saber o nosso destino – “fal” em persa. A
campa em si é um local obrigatório para se visitar em Shiraz.
Constrastando com o aspecto cru da cidade, a campa é um belo e calmo
jardim.
“Você deve ser o motorista...” respondo-lhe. “Morteza”
apresenta-se, entregando um cartão e um sorriso contagiante. Não
poderia estar mais contente com quem me iria levar a Persepolis. Morteza
é a personificação da simpatia persa. Gentil, educado e muito jovial.
Pelo caminho – uma estrada que corta as montanhas e que por si só enchem
os olhos – conta-me como é amigo de um outro Português, também João,
mas neste caso, Pedro. Descreve as peripécias desse João e como ele
ficou raptado pelo período “dos melhores 22 dias da sua vida” entre o
Paquistão e o Irão.
Conta-me
um pouco da sua história de 62 anos. De como era trabalhador da
petroquímica no tempo do Xá. E de como, depois da revolução, se despediu
por não conseguir trabalhar com os Mullahs. Vejo como esta revolução
teve impacto na sua vida, e como nem sempre a “revolução” tem o melhor
desfecho. Guia-me de volta à sua juventude e de como os aldeões
conduziam os primeiros carros. Quando me explica que eles pensavam que o
espelho retrovisor servia apenas para ajeitar o cabelo, não posso
deixar de largar uma gargalhada sentida. É um verdadeiro contador de
histórias, e pelas suas palavras viajo um pouco pelo país que já não
existe. Ao chegar ao meu destino, ainda me acompanha até comprar o meu
bilhete para Persepolis.
E
este local, apesar de meio despido, é uma lembrança que esta é uma
terra de grandes impérios. Da campa de Artaxerxes, percebe-se a escolha
do local. Uma planície ampla é o cenário perfeito para o palácio de um
grande império. Vagueio um pouco por aqui e por outros tempos. Imagino o
que as comissões estrangeiras devem ter sentido ao entrar pela
escadaria monumental à sua entrada. Do cimo, trompetas ecoariam, e
demonstrariam, pelo som, a força deste império.
Após
esta visita ao passado, vou para outra máquina do tempo: Naqsh-e
Rostam. São os tumúlos gigantescos de Darius I, II, Xerxes I e
Artaxerxes I. Apenas conseguimos ter a noção da sua dimensão quando
observamos outro ser humano – sempre de aspecto minúsculo – a olhar
espantado para o mesmo. Das várias inscrições uma parece um aviso ao
limite que a Europa teve. Num baixo-relevo o rei persa segura pela mão o
imperador romano, enquanto outro se ajoelha. Aqui foi Roma que prestou
vassalagem a outro grande império.
Volto
à companhia do simpático Morteza, enquanto regresso a Shiraz. Dá-me
várias indicações sobre os belos locais que este país tem para oferecer.
Explico-lhe que já vi o lindíssimo masoleu Aramgah-e Shah-e Cherag, ou
que me perdi pelas misteriosas e infintas ruelas dos bazares desta
cidade. Aí é impossível não deixarmos a imaginação nos guiar, enquanto
passeamos à deriva. A tapeçaria é dominante, cortada pelas especiarias,
perfumes e chás. Refiro-lhe que me falta apenas experimentar uma
especialidade local – Faloodeh Shirazi, um gelado. Prontifica-se a me
levar ao local que me tinham indicado. Uma gelataria por detrás do forte
que domina o centro da cidade. Este forte, austero por fora, mas
delisioso por dentro, marca o fim da Avenida Zand - estrada que corta
toda a cidade. Despeço-me com um obrigado muito sentido e a certeza de
que não poderia ter encontrado melhor pessoa para me transmitir o que
esta cidade tem para oferecer.
Isfahan
O
meu espírito retorcido tem destas coisas. O normal é começar o périplo
iraniano com Isfahan (isto se não se quiser ficar em Tehran). Eu tinha
de fazer ao contrário e terminar nesta cidade. E em bom momento o fiz.
Isfahan é a pérola da Pérsia. Uma cidade com muita vegetação e um rio
que a separa em duas partes (pormenor que salta à vista depois de passar
tanto tempo sem ver água). A cruzar esse rio estão inúmeras pontes.
Umas mais modernas, outras com um rico historial. As mais antigas – e as
que gostei mais – são a Si-o-Seh e a Khaju. Ambas construídas no tijolo
amarelado típico desta região. São pontes entre o norte o sul, entre a
realidade e a imaginação. Belos sítios para ficar e contemplar a beleza
do rio Zayandeh e das suas margens. É uma cidade que se passeia por
aqui. Entre uma estrada de árvores, flores e arbustos encontramos
algumas estátuas, recreios e máquinas de exercício. É algo imperdível.
Mas
este corredor de arvóres continua pela avenida principal – Chahar Bagh
Abbasi. Nos seus lados, o corre-corre normal das cidades iranianas.
Trânsito, muitas lojas e cores e muito movimento. No seu meio, uma
tranquilidade contrastante. Daqui chega-se à Praça Iman. Uma ampla e
geométrica praça. Contém o que de melhor a Pérsia tem para oferecer: o
bazaar a norte, a mesquita Iman a sul, a leste a mesquita Sheikh
Lotfollah e a oeste o Palácio Ali Qapu. A sua beleza não está apenas nos
seus monumentos, mas na forma como a sua decoração subtil, apenas
rasgada pela lúxuria dos referidos, nos deixa num estado de
tranquilidade. Por detrás desta praça está uma cidade que vive. Um
cidade que corre e se movimenta. Aqui parece ter um ritmo mais calmo e
ligeiro.
Um
bom sitio para sair é pelo Bazaar. Local sempre propício à imaginação e
à satisfação da nossa vontade de observar. Cada detalhe deixam-nos uma
recordação que mais tarde nos irá fazer sorrir. E, mesmo perdido no meio
das suas ruas fechadas, acabaremos por ir parar à parte mais antiga da
cidade. Aqui o cenário é bem diferente da beira-rio. O amarelo desértico
é dominante. Esta zona é constituída por inúmeras ruas estreitas em que
nos apetece ficar perdidos. No entanto - e sob pena de perdermos
demasiado tempo a chegar a algum lado - vale a pena não o fazermos com
muita “intensidade”. Aqui existe outro momento “wow”. Trata-se da
Mesquita Jameh. Uma verdadeira homenagem à evolução da arquitetura
islamica. Por fora passa completamente despercebida. Mas uma vez lá
dentro, o tempo é para contemplar todo o seu espaço.
Para
completar a cidade nada melhor que ir ao quarteirão arménio. O caminho
para lá leva-nos à extensa avenida Tohid. E por estes lados, o moderno
convive com o clássico, as ruas amplas com os becos estreitos.
Caminha-se e encontra-se as lojas que nos habituamos a ver noutros
contextos (Apple, Adolfo Dominguez, Nike, Puma, Geox, etc...). Aqui têm
um sabor diferente. É mais um sitio para onde deixarmos ir até onde os
nossos pés aguentarem. Encontraremos numa loja, num sinal, numa flor, na
cor de um prédio, ou no simples movimento natural da cidade, interesse
suficiente para ficar.
Claro que
tudo isto é embrulhado pela simpatia dos seus habitantes. E em qualquer
oportunidade falarão contigo, ajudar-te-ão ou tentarão te compreender -
mesmo que o máximo de palavras comuns sejam uma dúzia. Uma simpatia que
guardarei sempre. Um enorme presente, talvez a maior pérola que podes
levar contigo.
E por debaixo do véu...
…está um
mundo que espera por ti. Cada cidade é unica. Guardo o movimento de
Tehran, a simpatia de Shiraz e a tranquilidade de Isfahan. Saio com a
sensação que irei voltar. Apenas levantei um pouco do véu. E nesse
pequeno espaço encontrei, acima de tudo, uma riqueza nas pessoas que
cruzaram o meu caminho...